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É necessário rever as técnicas de investigação decorrentes da memória humana

Por Leonardo Marcondes Machado e William Weber Cecconello

 

Desde o final dos anos 70 do século passado, pesquisadores têm se dedicado a estudar a prova penal decorrente da memória humana. Em um dos primeiros experimentos na área de psicologia do testemunho, pessoas que assistiram a um mesmo acidente automobilístico foram divididas em diferentes grupos. Um dos grupos foi questionado: “a que velocidade os carros estavam quando se encostaram?”; responderam, em média, “50km/h”. Outro grupo foi questionado: “a que velocidade os carros estavam quando se esmagaram?”; responderam, em média, “65 km/h”.1 Embora expostos ao mesmo evento, a mudança na forma pela qual as testemunhas foram inquiridas acabou gerando diferentes respostas.

Diversos estudos nessa área já tornam consolidado o entendimento segundo o qual a forma como uma testemunha é perguntada determina sua resposta. Enquanto técnicas confiáveis resultam em informações com maior quantidade e melhor qualidade, técnicas inadequadas podem resultar na obtenção de poucas informações e com confiabilidade questionável.2

De fato, a memória humana é sujeita a falhas, as quais nem sempre são devidamente consideradas pelo sistema de justiça, o que pode interferir diretamente no processo de tomada de decisão das agências criminais, em especial do próprio julgador. Entretanto, é possível aprimorar as práticas utilizadas para obtenção de informações que tenham por base a memória de vítimas, testemunhas e suspeitos, à exemplo da mudança ocorrida no Reino Unido, hoje uma das principais referências nesse campo.

Ocorre que, também no Reino Unido, o cenário já foi bem diferente. Policiais aprendiam a entrevistar com base na própria experiência ou copiando colegas mais antigos, que, por sua vez, também não haviam recebido treinamentos específicos. Por consequência, a qualidade das informações obtidas em uma entrevista era ambígua, de modo que não se podia confiar naquele tipo de conhecimento a respeito do caso penal. Esse cenário era ainda pior para entrevistas com suspeitos (interrogatórios), cujo principal objetivo consistia apenas em obter uma confissão da prática criminosa. Havia, em síntese, uma baixa qualidade epistémica desse tipo de prova penal. O que, por evidente, redundava em julgamentos mais suscetíveis a erros, uma vez que fundados em um acervo probatório pouco fiável. Nesse contexto, as críticas por parte da academia, da mídia e da população em geral a respeito desse modelo de justiça criminal eram constantes.3

Frente a esse cenário, com evidente necessidade de mudança, as principais instâncias policiais buscaram contato com pesquisadores, com o intuito de reformularem determinados métodos e práticas de investigação. A partir dessa união de esforços, criaram-se novos protocolos, treinamentos e técnicas baseadas em evidências científicas, fomentadas por um diálogo de mão dupla. Os pesquisadores buscavam levar o conhecimento testado por meio de experimentos, em laboratórios, para a atuação profissional de policiais ao mesmo tempo em que os policiais passaram a dar feedback sobre práticas a serem aprimoradas, bem como eventuais necessidades quanto a novos instrumentos e técnicas.45

Esse intercâmbio entre teoria e prática, que se retroalimenta desde os anos 80, tornou o Reino Unido referência mundial no que tange às técnicas para obtenção de informações por parte de vítimas, testemunhas e suspeitos, em maior quantidade e qualidade. Atualmente existe desde um modelo padrão para a realização de entrevistas (Protocolo PEACE)6 até instrumentos específicos. Citem-se como exemplos os protocolos de entrevistas com testemunhas de eventos críticos como ataques terroristas (WISCI)7 e instrumentos de entrevista auto administrada (SAI)8. A maioria desses trabalhos, fruto do diálogo entre academia e polícia, foram elaborados em conjunto, sempre visando garantir uma prática investigativa criminal mais eficiente e com maior respaldo científico.

O exemplo do Reino Unido tem inspirado outros países, como Noruega, Austrália e Nova Zelândia9, a buscarem essa aproximação entre policiais e pesquisadores como uma ferramenta importante ao desenvolvimento de boas práticas na justiça criminal. O resultado tem sido um corpo robusto de pesquisas propositivas, que visam criar, testar e validar métodos para a obtenção de informações com menor chance de erros de julgamento tendo por fonte a memória humana. Os estudos em torno da chamada “Entrevista Cognitiva”10 e do protocolo “NICHD”11 para a entrevista de crianças podem ser compreendidos nessa linha.

Por aqui, a investigação criminal, em que pese reformas e iniciativas pontuais, ainda mostra-se muito tímida na sua interlocução com outros tipos de saberes especializados como a psicologia cognitiva. Os juristas, em sua maioria, parecem presos ao modelo inquisitorial da década de 40 do século passado, o que acaba contaminando o processo de formação dos próprios investigadores no campo penal.

É preciso, no entanto, alavancar essa mudança cultural, fomentando cada vez mais o aprimoramento científico das agências criminais, em especial dos órgãos policiais, que funcionam como os primeiros responsáveis pela instrução dos casos penais. Hoje há um robusto corpo de evidências apontando quais as melhores técnicas para a obtenção de relatos de vítimas, oitivas de testemunhas, interrogatórios de suspeitos e realização de reconhecimentos de pessoas, as quais deveriam estar na base dos cursos de instrução policial.

Não se trata, por óbvio, de uma crença absoluta no conhecimento científico como a panaceia para todos os males da justiça criminal tampouco na importação automática de experiências internacionais sob a forma de uma epistemologia colonial, mas apenas de uma busca por caminhos possíveis à adequada revisão das metodologias informativas dos procedimentos de investigação criminal, visando sempre a diminuição dos graves erros cometidos pelo sistema de justiça brasileiro.

Enfim, parece urgente que se compreenda melhor o funcionamento da memória humana, bem como os fundamentos de boas técnicas de entrevista e reconhecimento de pessoas já consolidados pelos saberes especializados, integrando essas noções do campo científico à realidade dos nossos órgãos de investigação criminal.


1 LOFTUS, Elizabeth F.; PALMER, John C. Reconstruction of automobile destruction: An example of the interaction between language and memory. Journal of verbal learning and verbal behavior, v. 13, n. 5, p. 585-589, 1974.

2 LOFTUS, Elizabeth F. Eyewitness testimony. Applied Cognitive Psychology, v. 33, n. 4, p. 498-503, 2019.

3 GRIFFITHS, Andy; MILNE, R. Will it all end in tiers? Police interviews with suspects in Britain. Investigative interviewing, p. 167-189, 2006.

4 MILNE, Becky; SHAW, Gary; BULL, Ray. Investigative interviewing: The role of research. Applying psychology to criminal justice, p. 65-80, 2007.

5 SHAWYER, Andrea; MILNE, Becky; BULL, Ray. Investigative interviewing in the UK. In: International developments in investigative interviewing. Willan, 2013. p. 50-64.

6 CLARKE, Colin; MILNE, Rebecca. A national evaluation of the PEACE Investigative Interviewing Course. London: Home office, 2001.

7 SMITH, Kevin; MILNE, Becky. Witness interview strategy for critical incidents (WISCI). Journal of Forensic Practice, v. 20, n. 4, p. 268-278, 2018.

8 GABBERT, Fiona; HOPE, Lorraine; FISHER, Ronald P. Protecting eyewitness evidence: Examining the efficacy of a self-administered interview tool. Law and human behavior, v. 33, n. 4, p. 298-307, 2009.

9 WILLIAMSON, Tom; MILNE, Becky; SAVAGE, Stephen (Ed.). International developments in investigative interviewing. Routledge, 2013.

10 FISHER, Ronald P.; GEISELMAN, R. Edward. Memory enhancing techniques for investigative interviewing: The cognitive interview. Charles C Thomas Publisher, 1992.

11 LAMB, Michael E. et al. A structured forensic interview protocol improves the quality and informativeness of investigative interviews with children: A review of research using the NICHD Investigative Interview Protocol. Child abuse & neglect, v. 31, n. 11-12, p. 1201-1231, 2007.

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